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Construindo Identidade: o processo de transição do nome 

Os nomes desempenham um papel poderoso na expressão da identidade pessoal. Eles são mais do que simples rótulos: são declarações de quem somos e como desejamos ser reconhecidos. É uma forma de autodefinição, apresentação e distinção. Portanto, o nome é um dos traços mais significativos da identidade humana, sendo ligado a quem somos, em qualquer contexto.

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Para entender essa importância, podemos analisar o nome de registro como o primeiro significado que recebemos. Ele é carregado de significado, intenções e expectativas das trajetórias de toda uma vida que está por vir.

 

O psicólogo trans não-binário Danny de Castro, especialista em saúde LGBTQIA+ no Instituto Pride, aponta o nome como uma parte essencial de como uma pessoa é percebida pela sociedade. Dessa forma, uma pessoa transexual, ao se deparar com um nome que não está alinhado com sua identidade de gênero, enfrenta conflitos internos e desafios sociais. “A nossa sociedade ainda tem muitas limitações, preconceitos, e desinformações. Quando você não se identifica com aquela identidade imposta ao nascer, acaba causando muito desconforto”, explica.

 

Quando uma pessoa trans escolhe seu próprio nome, ela está afirmando sua identidade de gênero, rompendo as limitações impostas por rótulos anteriores. “Muitas vezes, pessoas trans escolhem deidades da mitologia, planetas ou fenômenos da natureza, por exemplo, Nuvem, Céu, Sol, justamente por saírem desse pressuposto de gênero”. Segundo o pós-graduando em sexologia humana, escolher o próprio nome significa decidir a própria identidade.

 

Recentemente, Wer Eusébio, pessoa psicóloga de 28 anos que se identifica como não-binárie, passou por esse processo de descoberta, identificação, e autoaceitação. Seu nome morto sempre foi uma questão. Wer tem um irmão mais velho e afirma que houve um padrão na escolha dos nomes. "É como se minha mãe precisasse de um nome que rimasse com o nome do meu irmão. Isso sempre me incomodou.”

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Elu conta que seu nome morto, Wermeson, não tinha nenhum significado. “O mais próximo era o do nome Emerson, que significa filho do que tem poder universal, e, mesmo assim, nunca me representou”. Ainda existe uma ligação à cultura irlandesa: ao fazer uma junção entre o nome do pai e da mãe, se colocava o sufixo son, que, em inglês, significa filho. “No final, isso foi usado como algo em comum entre o meu nome e o do meu irmão. Eu não queria ser visto a partir de filho de alguém. Eu quero ser eu, por mim mesmo. Eu pela minha galera, eu por quem eu me identifico.”

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A falta de significado em relação ao nome que Wer lidou ao longo da vida, agora passou a ser traduzida como infinitas possibilidades de significados. Seu processo criativo começou a partir daí. "Eu gostaria de manter o W. Já pensei em ter como nome apenas W. Só que, pra mim, ficou um tom de abreviação, como se representasse apenas um mínimo de um todo que um dia já fui. E não se trata sobre isso”, declara. Foi então que elu, que sempre gostou de nomes curtos, pensou em Wer. Pesquisando na internet o significado, a aba do Google Tradutor apareceu na tela, e interpretou “Wer” como “We’re”, abreviação informal de We are, traduzido para português como “Nós somos”. 
 

“Nós somos” era o nome de uma brincadeira que Wer criou com seus primos quando crianças e brincavam de criar novas identidades para super-heróis já existentes, ou até mesmo criar novos heróis. “Foi um estalo na minha mente. ‘Nós Somos’ fala muito da minha história. Na hora, eu me conectei diretamente a esse momento da minha infância. Não tinha outra opção melhor.”

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A partir de então, elu foi somando a tradução a outros significados, trazendo mais e mais camadas para o nome. “Nós Somos me faz pensar e me conecta muito a essa luta, que não é, e não precisa ser individual.  Se trata de um coletivo, de uma militância, e de uma valorização a quem já passou por esse caminho e contribuiu para que ele existisse hoje”. O psicólogo compartilha que algumas pessoas enxergam seu nome apenas como uma abreviação de seu nome morto. "Eu prefiro pensar como uma parte minha, que, de alguma maneira, me acompanhou por tantos anos da vida”, rebate Wer. 

 

A escolha de um nome é uma etapa importante na jornada de uma pessoa trans. A cineasta Pâmela Lúcia, de 24 anos, também compartilhou sobre seu processo.  

 

Da mesma forma que todo artista tem sua assinatura, a cineasta escolheu Pâmela Lúcia para se assumir para o mundo como uma mulher trans, uma escolha que conecta passado e presente. “Eu quis pensar em um nome que ficasse próximo do nome que recebi quando nasci. Pensei primeiro nas iniciais, para manter o P e o L, que tinha no nome”, explica Pâmela. “O que era Pablo Lúcio, eu transformei em Pâmela Lúcia. Era um nome composto, em homenagem a uma tia, Vânia Lúcia. Sempre soube que queria manter o ‘Lúcio’ de alguma forma. Alguém teve essa consideração, e eu escolhi ter também, por mais que agora meu nome seja uma escolha completamente minha”, complementa.

 

Foi em uma cafeteria que Pâmela venceu esse medo de se apresentar publicamente como ela mesma pela primeira vez:

“Me apresentar como Pamela é uma questão de me aceitar e reafirmar para o mundo. O primeiro conflito que tive com isso foi comprando um café. Me perguntaram qual nome era para colocar no copo, e eu fiquei... ‘E agora, o que eu falo? O meu nome morto? O meu nome? Só as iniciais?’. Mas eu pensei: ‘Não. Escreve Pâmela. É para pôr Pâmela e ponto final’. A partir daí, eu comecei a ser muito mais tranquila quanto a isso.”

A primeira coisa que Pâmela fez após o café foi trocar seu nome nas redes sociais. Alguns amigos próximos, já cientes do que vinha acontecendo, imediatamente perceberam e a acolheram. “Foi até mais fácil aceitar esse nome e começar a me apresentar por ele”, ressalta.

Carta fílmica

Pâmela Lúcia

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Além das convenções: o impacto da neutralidade

Até abraçar seu nome feminino, Pâmela passou por um processo complexo de aceitar que estava desafiando as imposições da sociedade quando o assunto se trata de identidade de gênero. Ela considerou optar por um nome mais neutro, na intenção de evitar conflitos em situações sociais ou profissionais.

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“Por muito tempo, eu fiquei pensando que se escolhesse um nome mais neutro, eu poderia passar por qualquer gênero quando eu estivesse me apresentando, alguma como um escapismo para evitar dor de cabeça e confusão com quem tivesse algum problema com meu nome”, reflete a cineasta.

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Caio Camargo e Rita Martins, pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia, estabeleceram a relação entre nome e gênero na sociedade brasileira no trabalho O jogo do nome nas subjetividades travestis. 

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Assim que se descobriu trans, June Bandeira, estudante não-binário de 19 anos, entendeu que o seu nome de registro não o agradava, mas ainda não sabia qual nome usar, ou sequer como escolher um que representasse quem ele é. “Usei o meu sobrenome por muito tempo. Eu não queria ficar usando vários nomes, porque acho que ia confundir as pessoas, tornando o processo de descobrimento e de aceitação mais difícil.”

 

June afirma que a escolha de um nome neutro remete diretamente ao fato de ser gênero fluido. “Gosto de usar o meu estilo para demonstrar o meu gênero e como estou me sentindo. Como eu não poderia trocar o meu nome como troco uma roupa, eu escolhi um nome neutro, que posso usar com qualquer pronome.” 

 

Durante a pandemia do Coronavírus, em 2021, ao estudar japonês, June ficou fascinado com os Kanjis, um dos sistemas de escrita da língua japonesa formado por ideogramas. Por ser uma pessoa que sempre se interessou por significados, e que buscava um sentido naquele período de incertezas, June procurou Kanjis de nomes que ele se interessava.

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Apesar do significado, a transição de June na família não foi tranquila como uma árvore. Por conviver em ciclos sociais com outras pessoas LGBT, a mudança com os amigos ocorreu sem problemas, conta. Na família, porém, o processo foi mais difícil. June afirma que não tem certeza se os pais entendem quem ele é. 

 

“Meus pais foram adolescentes nos anos 80, então tudo que eles sabem é diferente. Naquela época era difícil conceber a ideia de ser gay. Imagina ser trans não-binário? Eles entendem que sou trans, que eu não sou exatamente feminino, e é isso que conta para mim.” 

 

O nome é um direito básico da vivência coletiva, e por ainda utilizarem o nome morto, o estudante se sente desconfortável com a família. “Por exemplo, eu fosse cis e o meu nome é Valéria. É como se alguém me chamasse de João Vitor, não tem nada a ver. Escolhi viver de novo, escolhi o meu nome, escolhi a minha vida. Estou aqui para viver do jeito que eu achar mais tranquilo, e não do jeito que as pessoas acham que me veem, ou querem que eu seja.”

 

 

“Eu não sou o meu nome morto. Ele representa uma época de confusão, que eu não entendia nada do que estava acontecendo, e representa outra época da minha vida, que não sou eu”

Processo criativo

JUNE

BANDEIRA

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Retificação: processo legal e social na mudança

No Brasil, a luta pela retificação de nomes de pessoas trans é uma jornada complexa. Sem uma lei federal específica para proteger os direitos da comunidade LGBTQIA+, a situação se torna ainda mais desafiadora. As resoluções, portarias e decisões do STF são um baluarte nesse processo, mas, na visão de Amanda Souto Baliza, advogada e mulher transsexual, a falta de legislação unificada torna a população trans vulnerável a altos índices de violência. “Quando a gente tem uma população vulnerabilizada e tem dificuldade de acesso a direitos, acabamos precisando que mecanismos sejam criados para que esses direitos sejam garantidos, e, eventualmente, a violência vá diminuindo de acordo com essa mudança de cultura na sociedade.”

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Atualmente, um dos principais desafios é lidar com a burocracia do procedimento, reunir documentos como certidões de cartórios distribuidores e, de acordo com Amanda, o maior entrave é o financeiro, já que a legislação varia em cada estado. O processo varia entre 400 a 1000 reais, o que pode inviabilizar a retificação de pessoas carentes. Além disso, caso a pessoa que deseja retificar o nome tenha dificuldades para realizar o processo sozinha, pode ser necessário que ela contrate um advogado, aumentando o custo do processo.

Por essas questões, uma rede de apoio se torna um instrumento importante para quem está em transição de gênero. Saber que está seguro e que seus familiares e amigos próximos apoiam a sua decisão é, em muitos casos, um privilégio. Daniel da Silva Scaff, de 20 anos, é estudante de Design na PUC-PR e realizou recentemente o procedimento de retificação do nome extrajudicialmente. Ele diz que o processo de adaptação dos pais com relação ao novo nome não foi instantâneo, mas que não houve conflitos e eles o apoiaram nessa decisão. 

 

Daniel também conta que não se identificava com seu nome de nascença

e se sentia desconfortável quando alguém o chamava por ele. "Acredito

que antes eu achava muito estranho quando me chamavam pelo meu nome morto, eu

não me identificava e achava que estavam chamando outra pessoa", conta o estudante.

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Para quem não pode contar com a rede de apoio dos amigos e familiares, é possível obter

ajuda em ONGs, aplicativos e centros de acolhimento. A Associação Brasileira de Gays,

Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) elaborou o Mapa da Cidadania, um mapa interativo em que é possível verificar toda a legislação de cada estado referente a retificação de nome, o mapa possui também o contato de órgãos públicos e organizações que prestam auxílio no processo.

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Processo de retificação

Wer

eusebio

Passo-a-passo

amanda souto baliza
advogada

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